Entrevista – Pedro Lopes: «Acredito cada vez mais que a ficção terá um papel importante na criação da consciência histórica e da memória colectiva»
O Quinto Canal traz até si uma entrevista com Pedro Lopes, vencedor de um Emmy Internacional de Melhor Telenovela e autor de Glória, que estreia esta sexta-feira.
Glória é um thriller de espionagem e acção escrito por Pedro Lopes e realizado por Tiago Guedes. Esta co-produção da SPi e da RTP tem 10 episódios e é a primeira série portuguesa da Netflix.
Há duas décadas que o Pedro tem escrito novelas, séries e filmes. O que Glória representa na sua trajectória como escritor?
O mercado audiovisual está numa fase muito dinâmica, e teve como grande impulsionador os novos serviços de distribuição de conteúdos como a Netflix, por isso julgo que estou a fazer o caminho natural, que seria expectável para alguém que já teve a oportunidade de escrever para os três canais nacionais, mas que continua à procura de novas oportunidades de contar histórias originais e profundamente portuguesas, mas que tenham a força e a universalidade para viajar pelo Mundo.
De que forma surgiu a ideia da história de Glória? Houve algum detalhe ou questão em particular do qual brotasse a vontade de criar a série?
O tema andava comigo há uns anos, contado pelo meu avô, que visitou por diversas vezes as instalações, porque trabalhava na Emissora Nacional. Sempre achei surpreendente que a RARET fosse desconhecida da maioria dos portugueses. Depois, o trabalho foi perceber que história queria verdadeiramente contar, qual o ângulo…
Cronologicamente, a acção de Glória decorre no período do Estado Novo e, no panorama da geopolítica mundial, transcorre a Guerra Fria. Qual é a importância que julga ter a abordagem dessas questões históricas, políticas e sociais na contemporaneidade?
Eu adoro séries de época e baseadas em factos reais, e isso também se prende com o meu percurso académico. Desde miúdo que adoro História e foi essa paixão que me levou até à Faculdade de Letras de Lisboa. Mas, para além de uma questão de gosto, acredito cada vez mais que a ficção terá um papel importante na criação da consciência histórica e da memória colectiva, o que nem sempre é uma construção pacífica porque muitas vezes questionam o próprio presente.
João Vidal é uma personagem complexa, cujas camadas não se coadunam com uma tendência de construção maniqueísta que por vezes assistimos. Embora seja uma personagem de uma ficção passada em 1968, que tipo de reflexões é possível que desencadeie no público?
O meu objectivo foi vermos um personagem em construção, no sentido que é alguém que não tem certezas absolutas sobre nada. O personagem do Miguel Nunes cresceu num ambiente privilegiado e foi-se apercebendo das desigualdades sociais e de como uma elite construía o seu poder baseado nessas mesmas desigualdades. De certa forma, há ali um sentimento de culpa de classe. E depois, quando vai para a guerra, percebe ainda melhor o que é o regime, com a sua propaganda que vendia um Portugal multirracial. É na guerra colonial que se politiza e que, posteriormente, será recrutado pelo KGB. E essa será uma escolha que lhe define um caminho sem retorno.
Como foi o processo de escrita e produção deste projecto? De que modo diferiu das outras séries em que já trabalhou?
Foi um processo muito longo de pesquisa, de escrita e de reescrita, na companhia de amigos que são também fantásticos argumentistas. A grande diferença foi a possibilidade de ternos tempo para reflectir, para experimentar, para mudar.
Como encara a chegada de Glória à Netflix Portugal? Está convicto de que possa ser o primeiro passo de uma nova fase na ficção portuguesa?
Durante estes anos em que trabalhámos no projecto não pensei nisso, queria apenas ter uma boa história, bem contada. Mas essa pergunta tem vindo a ser frequente nestas últimas semanas, por isso é óbvio que começamos a pensar que existe uma responsabilidade, de certa forma representamos a nossa indústria audiovisual, somos o cartão de visita.
O que acha das séries mais recentes produzidas em Portugal, quer na televisão aberta, quer nas plataformas de streaming? A sua qualidade está ao nível do que se tem feito no estrangeiro ou ainda há um longo caminho a percorrer?
Há a tendência em falar do que se faz fora de Portugal como se fosse um mercado único. A ficção é muito diferente de país para país, e isso prende-se com diferentes factores, que podem ser orçamentais, mas também de tradição narrativa. Não é só Portugal que tem a tradição da telenovela, é toda a América Latina, é a Turquia e o Egipto, é a Coreia do Sul. Portugal é um mercado periférico, com pouco dinheiro para produzir e com uma proto-indústria, mas penso que apesar disso tudo, temos vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos filmes, séries e telenovelas de grande qualidade.
Há muito que o sector da cultura clama por acções a nível de investimento, estatutos e regulamentação às entidades políticas. De que modo crê que elas podem incrementar o mercado audiovisual?
Julgo que o mercado audiovisual tem vindo a ter a capacidade para se mobilizar e temos bons exemplos dessa capacidade associativa, dos quais destaco a APIT (Associação de Produtoras Independentes de Televisão) e também a APAD (Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos), esta última que foi recentemente reorganizada e da qual sou associado. E obviamente que acredito que a criação de uma Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media ou de um PIC Portugal fará parte de uma estratégia para o fortalecimento do sector .
Pode adiantar-nos alguma coisa sobre futuros projectos?
Neste momento, a atenção está toda na estreia da série Glória (risos).
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