Entrevista – Helena Amaral: «Para uma audiência que é maioritariamente feminina é importante haver uma mulher que vai superando as dificuldades, chega ao fim e ganhou»
O Quinto Canal traz até si uma entrevista com Helena Amaral, autora de Quer o Destino, nomeada para o Emmy Internacional de Melhor Telenovela.
Quer o Destino foi exibida na TVI, entre Março e Outubro do ano passado. No elenco teve nomes como Sara Barradas, Filipe Vargas, Pedro Sousa, Pedro Teixeira, Isaac Alfaiate, Maria José Paschoal, entre outros.
Entre 1984 e 1994, a Helena deu aulas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Como foi a experiência? Sente saudades?
Sinto muitas saudades, gosto imenso de dar aulas. Desde miúda que sonhava fazer duas coisas: escrever e dar aulas. Tenho a felicidade de ter conseguido cumprir essas duas coisas. Dos sonhos não fazia parte dar aulas no ensino universitário, mas a vida tem sido simpática comigo e tem-me permitido fazer coisas com as quais não tinha sonhado.
Deixei o ensino porque fiz tudo muito cedo. Acabei o curso e fiquei como assistente logo e, ao fim de 10 anos estava farta – não das aulas, mas do ambiente universitário. É um ambiente que, como nos outros sítios, vim depois a perceber, pode ser opressivo. Tinha 32 anos, comecei a ter uma certa angústia ao pensar que, se a vida me corresse bem, ia chegar a velha e ainda estaria a calcorrear a Avenida de Berna (quatro anos de licenciatura, dois de mestrado, dez anos a dar aulas, tinha o doutoramento começado), e tinha vontade de fazer outras coisas…
Há mais de duas décadas que a Helena é argumentista. O que a motiva a escrever?
Sempre escrevi. Sempre li. Gosto do exercício da escrita, mas sobretudo de contar histórias. Sou uma “fala-barato” fantasiosa. Contar histórias é um verdadeiro prazer. Tenho gosto no exercício da língua. Sou muito pormenorizada, e até obsessiva, no controlo da linguagem e da escrita. Dá-me prazer. Felizmente tenho prazos, se não estaria infinitamente no mesmo texto, a aprimorar. Tenho mesmo o prazer da escrita…
Enquanto profissional do ramo e feminista, como é que a Helena crê que o audiovisual pode contribuir para a maior visibilidade dos problemas e desafios das mulheres?
O audiovisual já contribui, e as novelas em particular. Embora as pessoas achem que não, as mensagens mais eficazes são as subliminares e as narrativas televisivas também vivem disso.
A Escrava Isaura e a Gabriela Cravo e Canela são duas novelas que contam histórias com protagonistas femininas em histórias de superação. Têm outros ingredientes, mas são histórias de superação. As histórias contam o crescimento e empoderamento daquelas personagens femininas. São mulheres que vão dar cartas, sempre. Para uma audiência que é maioritariamente feminina é importante haver uma mulher que vai superando as dificuldades, chega ao fim e ganhou. Isso é no geral, na macro-história.
Mas depois, há muitas coisas simples ao longo da novela, que ajudam. Em Quer o Destino, a “Maria de Portugal” (Mafalda Marafusta), de que as pessoas gostaram bastante, era uma miúda um pouco desorganizada na sua vida e até na vivência da sua sexualidade, mas as pessoas perceberam e aceitaram essa forma singular de ser. Portanto, há pequeninas coisas de que se pode ir falando ao longo da história, sem necessidade de abanar uma bandeira, mas que são temas importantes: a liberdade sexual, a liberdade de escolha para a maternidade, por exemplo. No fundo, a história só tem de pôr o público do lado das personagens. Às vezes não é óbvio.
Também em Quer o Destino fizemos uma outra experiência: a personagem do Pedro Teixeira (Marcos Santa Cruz), que é um actor muito popular e óptima pessoa, aliás, era um grande bandido, um abusador, e exercia violência doméstica tanto sobre a mulher (Ana Sofia Martins) como sobre a namorada (Maya Booth). A ideia foi provar que os criminosos não têm escrito na testa se são violentos em casa ou não. Podem ser lindos, queridos, podemos até sentirmo-nos atraídos por eles, mas isso não os isenta de culpa. As novelas não têm bandeiras, mas obviamente têm ideologia. Quem escreve tem princípios ideológicos, ideias para comunicar. E é bom que avise, que ajude a prevenir comportamentos criminosos e anti-sociais.
Claro que sendo feminista (acho que já nasci feminista e, sinceramente, nem consigo perceber que alguém não o seja) empenho-me no tratamento deste tipo de causas. E, ao contrário do que muitas pessoas pensam, feminismo não é o contrário de machismo (isso seria femismo) e é uma atitude, uma forma de agir e pensar de quem procura anular a discriminação das mulheres e encontrar a igualdade entre as pessoas, independentemente do género, sexo, idade, etc. Sabemos que a discriminação em relação às mulheres existe e pode ainda ser ampliada por outros factores como a idade, a aparência física, etc. Há que combater tudo isto, logo, claro que sou feminista.
A violência doméstica tornou-se crime público em Portugal no ano de 2000, mas as estatísticas ainda nos revelam números expressivos. O que considera que se falta fazer na luta contra esta realidade?
É um flagelo autêntico. Pode fazer-se muitas coisas, em várias frentes. Deve educar-se as novas gerações para a cidadania, para a igualdade. Mas é difícil num contexto social onde, por exemplo, as mulheres continuem a ganhar menos do que os homens, tenham mais medo de andar na rua do que os homens, receiem ser violadas… O contexto tem que mudar. A violência doméstica é um tema que tem que estar em cima da mesa todos os dias. As pessoas têm que perceber que as relações abusivas têm sempre um final triste, dramático. Mesmo que as vítimas não morram em consequência de um abuso, qualquer coisa dentro delas morre.
A subjugação, em razão do sexo, por se ser mulher – problema que afecta mais de metade da população mundial – não pode ser considerado normal, nem um problema exclusivo das mulheres, devendo ser também dos homens (mesmo daqueles e daquelas que acham que o problema não existe). Só a ideia de que possa estar sujeita aos ditos “piropos” já diz que sou discriminada. Os homens podem ter medo de várias coisas, mas em princípio não têm medo disso. Claro que as coisas mudaram bastante, mas permanecem muitos sinais e práticas de machismo na nossa sociedade…
A respeito da violência doméstica, não sei se tudo se resolve com penas mais gravosas, mas resolver-se-ia certamente se as penas fossem de facto cumpridas. Já assisti a situações dessas em que a mulher, a vítima, teve que sair de casa e o marido abusador ficou repimpado na morada de família… é o dia-a-dia. Sabendo que as queixas falsas e caluniosas são estatisticamente quase irrelevantes, como é que se justifica que as vítimas que denunciam um agressor ainda tenham de sair de casa. Tem que haver um dispositivo legal que permita fazer uma queixa sem mais prejuízo da vítima…
Por exemplo, uma criança que assista à mãe a ser agredida pelo pai não está a ser educada para a cidadania. Não pode ser a criança e a sua mãe a ficarem com o desconforto da situação e abandonarem a sua casa. Isto não pode continuar. Não sei como se operacionaliza do ponto de vista do Direito mas tem de ser possível proteger as vítimas.
Juntamente com Isabel Frausto e Fernando Heitor, a Helena escreveu os primeiros oitenta episódios de “Conta-me Como Foi”, que estreou em 2007 na RTP. A série mostra-nos Portugal durante a vigência do Estado Novo. Durante a exibição da série, qual foi a reacção que percebeu nos jovens que a assistiram?
A coisa mais engraçada que ouvi veio da minha sobrinha mais nova, nascida em 1994, que ria muito com as cenas da escola, achava que aquilo era uma palhaçada que eu tinha inventado, porque não passa pela cabeça de uma garota de agora que nas aulas se levava reguadas. Para ir à casa de banho tínhamos que levantar a mão e explicitar, alto e bom som, o que íamos fazer, para que a professora pudesse contabilizar o tempo que demorávamos. Portanto, percebo que para quem nasce em 1994 pareça incrível, inverosímil… Eu própria, olhando para atrás, acho que é incrível como é que essa prática tão cruel ainda estivesse em vigor quando fui para a escola.
A recepção de Conta-me como foi foi surpreendente, muito boa. Quem viveu naquela época sentiu-se representado e, quem não viveu, achou graça, ridículo que as mulheres, por exemplo, estivessem sujeitas àquelas restrições morais.
Créditos: Joana Correia
Quer o Destino é uma adaptação do original chileno Amanda. O que levou a Helena a acreditar que essa história daria uma boa adaptação ao nosso país?
Foi para tornar portuguesa uma história universal já feita no Chile que me contrataram. O que é uma adaptação? As pessoas acham que adaptar é traduzir, mas não há nada de mais errado do que isso. Se percebem que não é assim para o “Conta-me Como Foi”, que também era uma adaptação, também têm obrigação de perceber para os outros formatos. Fazer uma adaptação é isso mesmo: é fazer uma história que faça sentido no país onde vai acontecer. E, portanto, “Quer o Destino” é uma coisa e “Amanda” é outra.
O que é bom nas adaptações, do ponto de vista de quem faz, é que podemos “corrigir” coisas que não saíram tão bem a quem fez a história pela primeira vez. Normalmente, as histórias que são escolhidas para serem adaptadas são histórias universais. São histórias de amores, vingança, superação. “Amanda” é a história de superação de uma mulher. No caso, é uma superação mais sanguinária, porque no original chileno ela descobre tudo o que aconteceu, mas morre. Não tenho nada contra as protagonistas morrerem, mas não tinha qualquer interesse nisso. Achei mais interessante uma superação para a felicidade. Adaptar é isso: é tornar a história nossa. No caso de “Conta-me Como Foi”, as pessoas referiam poucas vezes que era uma adaptação porque era uma série, e falam mais da questão em relação às novelas.
“Quer o Destino” passa-se no Ribatejo e a matriarca, a personagem de Maria José Paschoal (Catarina Santa Cruz), mãe dos quatro rapazes putativos violadores, nasceu numa terra de avieiros e não foi por acaso. Escolhi assim porque isso explica de alguma maneira que ela fosse uma mulher com aquela fibra, porque os avieiros eram populações pobres, migrantes, e Alves Redol tratou isso muito bem. Essa característica de migrar sazonalmente de Vieira de Leiria para o Ribatejo, trocando a pesca de mar pela de rio, permite que olhemos para a personagem quando começa a história, na contemporaneidade, e aceitemos que ela seja tão dura. Catarina não quer perder nada do que conquistou a pulso, no início da sua vida tinha muito pouco. Esse lado áspero da personalidade da personagem explica-se por essa vivência. O que é uma boa personagem de novela? É aquela que nos leva a acreditar no seu percurso…
Quer o Destino estreou a 23 de março de 2020, poucos dias após o decreto do estado de emergência, tendo inclusive as gravações suspensas durante dois meses e meio. Como foi a administração dessas contingências advindas da pandemia?
Para a escrita foi uma gestão muito difícil. Foi muito difícil continuar a escrever. A escrita de novela tem um objectivo prático. Foi difícil continuar a escrever com a produção parada, com tudo em casa, sem saber se se voltava, como se voltaria…
Quer o Destino foi nomeada para o Emmy Internacional de Melhor Telenovela. Como recebeu a notícia?
O Francisco Antunez, coordenador de projecto, sempre esteve convencido que íamos ser nomeados. É um processo longo e a determinada altura esqueci-me do assunto. Mas foi um dos primeiros telefonemas que fiz, assim que me disseram, a par dos pessoais, como é óbvio, e de José Eduardo Moniz e Pedro Curto com quem trabalhei muito de perto neste projecto.
O que acha das séries e novelas mais recentes produzidas em Portugal? A sua qualidade está ao nível do que se tem feito no estrangeiro ou ainda há um longo caminho a percorrer?
Acho que depende. Fazem-se coisas óptimas cá. Não podemos generalizar. Claro que quanto mais se fizer maior será a qualidade, em média. Mais massa crítica… mais qualidade. É assim em todo o lado.
Actualmente, a Helena está a escrever a novela “Quero é Viver” cujas gravações decorrem desde Setembro, para estrear no próximo ano. Qual é a expectativa para este projecto?
A expectativa é sempre ser feliz a escrever, o que acontece, e que o público goste da história. Penso que vai acontecer. Temos um óptimo elenco, décors lindos, excelente fotografia, realização e uma excelente coordenação de projecto, a cargo de Manual Amaro da Costa. Estou muito entusiasmada.
É uma história de mulheres, com amor e humor. Uma história onde poderemos “ouvir” várias formas de falar e sentir a língua portuguesa. É uma história que podia acontecer a qualquer um de nós. Acredito que vai resultar.
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Nota: Esta entrevista foi concedida com base no antigo acordo ortográfico.