Entrevista – João Matos: «A ficção tem a capacidade de nos tocar emocionalmente»

O Quinto Canal traz até si uma entrevista com João Matos, autor da série O Clube, que esteve nomeado nos Prémios do Quinto Canal 2021.


O Clube é uma série de três temporadas, produzida pela Santa Rita Filmes. Escrita por João Matos, a série está disponível na plataforma OPTO da SIC.

Concluíste a licenciatura em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 1996. Seguidamente, no final dos anos 90 e começo do novo milénio dedicaste-te ao trabalho no jornalismo. Atualmente não sentes falta dessa área?

Um jornalista nunca deixa de ser jornalista, mesmo não estando a exercer. Neste momento, sinto-me muito feliz por poder escrever para televisão e ser argumentista, como profissão principal, e professor universitário, como profissão secundária.

Mas acho que continuo a ter uma ligação fortíssima ao jornalismo, nomeadamente porque em cada projeto o jornalismo é uma das minhas principais fontes de pesquisa.  Em alguns projetos tento complementar uma função de análise e criar um fórum de debate para os públicos, e na ficção há muitas vezes oportunidade de o fazer. Há um autor chamado Michael Schudson que define alguns dos mandamentos que os jornalistas devem ter, e esse é um deles.

Em Vento Norte, por exemplo, houve oportunidade de colocar questões sobre como o Estado Novo nasceu, como era Portugal na década de 1920 e porque surgiu a ideia de uma revolta militar. Ou n’O Clube, é importante aproveitar para colocar questões que o jornalismo não tem hipótese de colocar – como é a vida das mulheres da noite e que tipo de matizes ela tem. Isso é a minha veia jornalística sempre a tentar ir à procura de temas que sejam do dia-a-dia, mas com a possibilidade de lhes dar outras roupagens, tratar de outro ponto de vista e de poder muitas vezes – tal como faz Aaron Sorkin – criar a realidade do que poderia ser.

O jornalismo permite-nos apenas reportar naquilo que é, podendo deixar o “bom jornalista” ligeiramente frustrado porque as coisas não são como gostaria que fossem; e na ficção temos a possibilidade de mostrar caminhos. Às vezes, tal como tenho feito desde que comecei a escrever, em 2001, para mostrar a algumas pessoas alguém que está do lado do “bem” é necessário mostrar o “mal” em todas as suas matizes, sem medo. Ao longo dos meus projetos, tenho procurado olhar para a realidade e encontrar os critérios e os pormenores que o jornalismo tem de passar por cima, mas que na ficção fazem toda a diferença.

Concomitantemente com o trabalho na escrita és professor na Universidade Europeia, além de outros cursos que já ministraste. Quão importante essa experiência é para ti?

É muito importante pelo contacto com as novas gerações. Neste momento dou aulas aos cursos de Design, Fotografia e Ciências da Comunicação, na Universidade Europeia, em várias áreas mas muito em redor do storytelling.

Importa bastante perceber a forma como vão sendo renovadas as novas gerações que apanho todos os anos, percecionar como olham para o storytelling mas também, às vezes, ajudá-los a encontrar as ferramentas para se tornarem criativos e serem melhores espectadores/leitores.

Para mim, importa ter o contato com as novas gerações e ir percebendo como é que elas olham para a ficção. A maior certeza que tenho é que falta fazer um caminho de aproximação das novas gerações aos meios de difusão. Por exemplo, este ano tive imensos alunos do 3ºano a criarem pequeninos clusters para assinarem a OPTO para verem A Lista, ou há dois anos perguntavam-me como podiam aceder às Três Mulheres. Parece haver uma falta de ligação entre os meios tradicionais de publicidade e marketing e os novos públicos.

Todos os anos, sem exceção, tenho casos de alunos que depois de passarem pela experiência agradecem-me pelo facto de pelo menos terem tomado a consciência de algo que lhes faltava e agora têm. Tenho sempre excelentes experiências, não só ao nível da criação artística propriamente da escrita literária, mas também do guionismo. Quando isso acontece, qualquer professor fica muito contente de ter ajudado. Essencialmente para mim, importa mais ter ajudado do que classificado.

Em 2020, no concurso promovido pela Netflix com o ICA, O Chefe Jacob, projeto que escreveste em coautoria com a Raquel Palermo, foi um dos vencedores do prémio principal. Qual é a expetativa atual do projeto?

Terminá-lo. Pôr a bom uso a bolsa que nos foi dada, concluir a escrita e começar a fazer um trabalho que já iniciámos, junto de produtoras, para encontrar o momento certo de ele ser produzido.

Ter ganho a bolsa do ICA e da Netflix foi um enorme incentivo e uma enorme honra, porque houve milhares de projetos a concurso, entre eles estavam os grandes argumentistas do nosso país. Conseguir que o conteúdo seja valorizado é um prémio enorme.

Agora é uma questão de timing. Há várias fases de aposta. Hoje em dia, as plataformas de streaming como a Netflix, HBO ou Amazon, estão a apostar outra vez no contemporâneo e provavelmente virá depois uma vaga de época.

O Clube é uma série cuja ação gira em torno de uma casa noturna de luxo de Lisboa. Teve alguma questão ou personagem mais complexa que tiveste maior atenção no processo de desenvolvimento?

Quase todas, na verdade. A ideia do projeto d’O Clube foi contar a história de uma casa noturna e, na verdade, o clube é a grande personagem central da história. Depois, à medida que íamos construindo as personagens e os guiões começaram a ser escritos, foi-se percebendo o potencial de cada história.

É um pouco por isso que a primeira temporada é muito centrada no porteiro, Viana (José Raposo). A segunda é na Vera (Margarida Vila-Nova), a dona do clube. E a terceira é um spin-off para o que é que é o clube. Há até uma frase, no último episódio, da personagem Michele (Luana Piovani) que diz algo como “o clube nunca foi só estas quatro paredes e as pessoas que cá estão dentro”.

Em relação a uma personagem específica, aquelas que tinham mais matizes são as mais difíceis de concretizar antes de chegar ao apurar da personagem. Diria que a personagem Martina (Ana Cristina de Oliveira) foi trabalhada nesse sentido, nas suas nuances sexuais e da sua vida de crime. Não há nenhuma personagem que seja óbvia, mesmo as que parecem sê-lo. Todas as personagens das mulheres são complexas, com nuances.

Na terceira temporada, as personagens Rita (Ana Marta Ferreira) e Teresa (Jéssica Athayde) não eram óbvias. Uma inovação d’O Clube foi o trazer as pessoas do dia-a-dia. Alguém que trabalha, mas que depois precisa de entrar na noite para ganhar mais dinheiro e uma jornalista “normal” são colocadas fora da sua zona de conforto e acolhidas pelas pessoas que já lá estão. O desafio esteve em criar a verdade das personagens, porque estavam fora do âmbito.

Há um trabalho longo de escrita e revisão, com a Patrícia Sequeira, feito às vezes com a colaboração de outras pessoas, que ajuda a aprimorar o guião final que, será filmado. Quando se vê as cenas percebe-se que está tudo ali, naquele casamento perfeito entre quem vai dar o corpo e escreveu a história. Preservar a narrativa é muito importante.

Quando criaste O Clube previas que teria três temporadas e que seria bem recebida da parte do público?

Não fiz grandes previsões, só quis contar uma boa história. Quando comecei a perceber a estética que a Patrícia Sequeira tinha para a série percebi que ninguém ia ficar indiferente.

Houve um grande salto qualitativo na primeira temporada e depois nas seguintes, a nível da fotografia. Houve uma mudança de cor entre a segunda e a terceira temporada: saiu-se dos azuis e dos vermelhos e foi-se para os verdes e os amarelos, para dar uma lógica diferente. Isso dita que O Clube possa contar a história sem que perca força, não só com as personagens que estão como as que entram.

És não só um argumentista da contemporaneidade, mas também escreves histórias de época, como as séries Vento Norte e Três Mulheres ou a longa-metragem Salgueiro Maia – O Implicado. Como te costumas preparar quando abraças esse tipo de projetos?

Pesquisa, pesquisa, pesquisa. Não há outra forma de o fazer. No caso do Salgueiro Maia – O Implicado foi mais fácil para mim, porque ele é um dos meus heróis da história contemporânea. Com a pesquisa e o trabalho feito pelo autor do livro que dá origem ao filme, descobri o homem para além do herói. O filme tem esse lado emocional fortíssimo. Não é um filme histórico, é um filme sobre um homem, que as circunstâncias da história fizeram que fosse uma personagem incontornável da história de Portugal.

No caso das Três Mulheres, em que tive uma participação mais pós-escrita na primeira temporada, mas que na segunda já estive diretamente envolvido na escrita, foi mais difícil porque havia muitas coisas a contar.

No Vento Norte, o trabalho foi muito feito com a Raquel Palermo, houve também muita pesquisa. Às vezes, o mais interessante de quando se está a fazer pesquisa é que quando, por exemplo, se procura o que se estava a passar em 1920 encontramos situações que não sabíamos que tinham acontecido. São aqueles pequenos pormenores que dão mais verdade à história, mas que depois acabam por fazer diferença na história que se está a contar. Acredito que a ficção tem essa enorme magia de pegar em situações que toda a gente sabe que aconteceram na história e noutras que ninguém sabe, mas aconteceram, e juntas criarem uma ficção melhor.

Por isso, a liberdade de poder trabalhar com personagens que são originais dentro de histórias históricas ajuda imenso, pois trabalhamos na ideia de “isto podia ter acontecido assim” ou “e se tivesse acontecido assim?”. Isso é fantástico.



Qual é a importância que julgas ter a abordagem das questões históricas, políticas e sociais dos projetos de época na atualidade?

É fundamental, digo isso pelos meus alunos. Há uns anos dava uma cadeira em que falávamos da censura, e quando saiu as Três Mulheres pude-lhes mostrar o primeiro episódio, que arrancou com o julgamento da Natália Correia e de todas as pessoas que estiveram envolvidas no lançamento do livro Antologia da Poesia Erótica e Satírica.

A ficção tem a capacidade de nos tocar emocionalmente. Se a ficção nos estiver a contar o período da história de forma honesta, não ideológica ou alternativa, está a dar-nos informação que ficará mais forte e perene do que se estivermos só a falar da história, filosofia ou teoria.

No caso de Portugal, temos tantos períodos da história que não estão contados, mas que agora começam a estar. A ideia do filme do Sérgio Graciano, O Som que Desce na Terra, é fantástica porque é uma parte da história de Portugal que as pessoas, possivelmente, não se lembram. Havia uma guerra e os soldados mandavam mensagens para casa gravadas, e há arquivos na RTP. Criar uma história à volta disso já a torna humana. Os americanos têm milhares de horas filmadas sobre a Guerra do Vietname, com alguns filmes que até venceram Óscares. Nós ainda não conseguimos chegar lá, por uma questão orçamental ou de medo de o fazer. No caso do filme do Salgueiro Maia, temos dois momentos da Guerra Colonial, que atravessa uma parte importante da sua vida.

É importante ir buscar períodos históricos e contar histórias, sem medo e com a perceção de que para as gerações seguintes é essencial poderem ter esse contacto. Aqueles que de fato tiverem interesse irão investigar a história tal como ela é. A ficção tem um papel importante no contar da história, ainda mais a ficção audiovisual que está mais acessível para os mais jovens. Por isso, devemos continuar a fazer essa aposta.

 Quais são os desafios que a ficção portuguesa deve enfrentar no momento presente?

Diversidade. Com ela vem a necessidade de ter meios para fazer mais coisas e diferentes. O esforço que tem sido feito pela RTP e pela SIC de investir em séries e meios de difusão, como a OPTO, é muitíssimo importante. Quem conhece bem o meio audiovisual em Portugal e as dificuldades financeiras vê que há uma dificuldade em arranjar financiamento.

Não é um problema de língua. La Casa de Papel e Glória provam que a língua não é um obstáculo. Glória teve uma fantástica adesão em Portugal, nos EUA, em todos os territórios onde foi difundido.

O que é um problema é a noção de que é necessário ter dinheiro para desenvolver conteúdos. Quanto maior diversidade maior é a capacidade de encontrar pessoas interessadas. A diversidade tem a ver muito com os conteúdos que se criam. Acredito que nos próximos meses vamos ter algumas boas surpresas.

É importante criar novos públicos, e ir à procura daqueles não estão ainda atentos às coisas que fazemos e só consomem o que os outros fazem. Se conseguirmos convencer esses, todos ganham.

Diversidade e financiamento são duas palavras-chave para os próximos anos. Já se está a trabalhar nesse sentido, e espero que ainda melhore.

Há muito que o sector da cultura clama por ações a nível de investimento, estatutos e regulamentação às entidades políticas. De que modo crê que elas podem incrementar o mercado audiovisual?

O mercado audiovisual não pode estar só dependente do Estado. Não podemos querer o tipicamente “sol na eira e chuva no nabal”. O Estado tem imensas outras preocupações. Claro que podemos dizer que o orçamento de 1% para a cultura é uma vergonha e 5% seria o mínimo. Mas também é verdade que há outras entidades na sociedade portuguesa, nomeadamente a iniciativa privada, e a possibilidade de atravessar fronteiras e encontrar parceiros na Europa e resto do mundo com coproduções. Portanto, acho que não devemos ficar agarrados só ao mesmo.

Na tentativa de tentar simplificar a mensagem e chegar com os soundbites certos à atenção do jornalismo, passa um pouco a ideia de que as pessoas da cultura queriam que o Estado pagasse tudo. Não acho que seja nada disso. Um país que se quer europeu e moderno tem que apostar na cultura, e não é no audiovisual exclusivamente. O audiovisual nem será a primeira prioridade, havendo outras, como o teatro ou a dança, que precisam ainda mais dessa aposta e estão a tê-la.

É necessário regulamentar melhor. A iniciativa europeia já vai ajudar, tendo entrado em vigor em janeiro. Isso levará a que as empresas e os difusores sejam obrigados a investir parte dos seus lucros em produção nacional. É, portanto, mais um parceiro.

Em Portugal, o mecenato é uma coisa pouco utilizada e isso limita muito. Temos que trabalhar de uma forma nem miserabilista nem pessimista. 2021 foi um bom ano para demonstrar que uma há uma enorme criatividade e capacidade de produção. Isso nota-se especialmente quando entra um player de fora, como a Netflix, e de repente tudo parece melhor.

Estou obviamente solidário com todos aqueles que reivindicam melhores condições e uma maior participação do Estado na Cultura, mas também acho que tem que ser uma participação responsável. Deve haver um casamento entre o artístico e o comercial porque senão estaremos sempre divididos entre o cinema de autor e o cinema comercial, que é uma conversa do século XX.



Podes adiantar-nos alguma coisa sobre futuros projetos?

Neste momento estou a continuar o meu trabalho na OPTO como argumentista e consultor para o desenvolvimento de ficção. Há vários projetos que estão a andar. À semelhança de outros colegas argumentistas, estou à espera dos resultados dos concursos do ICA para vários projetos. Espero que 2022 seja um bom ano para eles.

Alguns dos projetos que escrevi até ao início do ano estão já disponíveis. A Lista é um deles, onde sou um dos argumentistas. É um projeto muito interessante à medida que vai avançando, tornando-se cada vez mais diferente. Mostra-se que a ficção pode ter um papel na abordagem de temas do dia-a-dia e que estão nos media, nomeadamente a extrema-direita, as questões de género, a violência, o abuso e assédio sexual, de uma forma natural, sem ser panfletária.

Haverá também a estreia da nova temporada das Três Mulheres, que participei antes da pandemia, e finalmente vai estrear este ano. É um trabalho de equipa, e eu sou só um dos argumentistas, mas recomendo vivamente porque os anos 70/80 são uma parte da nossa história que não estamos tão acostumados a relembrar.

E em Abril estreia a longa metragem Salgueiro Maia – O Implicado, que é o meu primeiro guião passado ao cinema, realizado pelo Sérgio Graciano, com a produção da Skydreams.

Estou curioso para ver outras coisas que irão estrear em Portugal este ano, na OPTO e nos outros canais, pois é importante haver um bom leque de escolhas. Estamos num momento positivo em termos criativos e a nível de produção, com muita gente a trabalhar, com muitas coisas a acontecer. É esperar para ver.


Rúben Gomes

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