Entrevista – Manuel Arouca: «A vida que vivi muitas vezes ultrapassa a ficção»
O Quinto Canal traz até si uma entrevista exclusiva com Manuel Arouca, consagrado autor da teledramaturgia portuguesa.
A novela Jardins Proibidos (2000) e o filme/minissérie Jacinta (2017) estão entre as dezenas de obras que escreveu ao longo das últimas décadas.
O Manuel nasceu em Moçambique, em 1955, e regressou a Portugal com 7 anos. Foi o apreço por aquele lugar que o levou a criar a história de Isabel e Rodrigo do livro Deixei o Meu Coração em África?
A paixão por África trouxe-a de lá, mas o livro é baseado numa história verídica de um amigo meu que esteve na Guerra Colonial e que já morreu. O Rodrigo era de uma família de classe média-alta em Portugal, e que mesmo assim esteve numa zona muito difícil da guerra, no norte da Guiné, sempre em constantes bombardeamentos. E ali, o que se irá discernir é o verdadeiro amor e o amor de aparências.
Em 1984 editou o romance Os Filhos da Costa do Sol, que teve um estrondoso êxito de vendas. 40 anos depois, em 2014, publicou a sequela da obra, com o subtítulo “A nova geração”. Como mensura o contributo que o livro teve para a literatura portuguesa?
Foi um livro muito contestado e polémico, mas foi um grande sucesso de vendas e, sobretudo, foi um livro marcante para a “geração do 25 de Abril”. O livro foca-se num período que é decisivo para a história de Portugal.
Não é um livro com uma visão política, mas sim uma crítica social, que tem uma observação mais importante externa do que internamente. Em 1985, a World Literature Today, revista conceituada norte-americana, que todos os anos foca um livro de um idioma, escolheu Os Filhos da Costa Sol, escrevendo que o objectivo do livro foi fazer uma análise social de uma sociedade fechada que de repente se confronta com novos tempos.
Isso não foi muito bem interpretado em 90% da crítica em Portugal, mas foi pelos leitores e por uma insuspeita Inês Pedrosa. Em 1990, o Expresso fez um inquérito para saber qual era o livro que tinha mais leitores e Os Filhos da Costa do Sol a cada livro tinha oito leitores. Entrevistaram-me, através da Inês Pedrosa, e deram o título “O bom selvagem”. Foi interessante porque ao conhecer-me teve uma outra interpretação sobre o autor.
Penso que em termos de costumes e de relação humana, os anos 70 foram muito importantes, por isso é um contributo d’Os Filhos da Costa do Sol. Trouxe abertura a muitos novos autores, tal como Rui Zink, muito aclamado pela crítica e de quem eu gosto muito.
Em 1986, concluiu a licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e mais tarde deixou a advocacia. Não lamenta ter preterido essa carreira?
Quando entrei na advocacia fi-lo tarde e com um sonho. No primeiro caso em que me envolvi tive a profunda convicção de que o juiz tinha sido comprado e tive uma antecipação do que se está a passar na nossa justiça. A vida que vivi muitas vezes ultrapassa a ficção. Era um caso muito humano, que parecia de uma série norte-americana. Se ele nos fosse favorável, como devia ter sido, se calhar tinha seguido a carreira e conciliado com a escrita, tal como muitos fazem, com sucesso.
No momento, o Nicolau Breyner fez-me um desafio juntamente com Tozé Martinho e deixei por completo a advocacia.
Em 2016, publicou o livro Jacinta: A Profecia, e no ano seguinte estrearam o filme e minissérie baseados na obra. Como lidou com o ónus de escrever e adaptar para audiovisual esse marco da cultura portuguesa, caro para tanta gente?
Jacinta é a personagem de Fátima que mais me encantou e identifiquei. Tinha uma rebeldia muito própria e uma sensibilidade artística. Em dramaturgia, grandes transformações é o que mais toca às pessoas e dos três pastorinhos ela é quem teve a maior transformação. Sempre tive o sonho de escrever um livro sobre ela, fiz uma profunda pesquisa, senti-me preparado e escrevi. O livro teve algum impacto, correu bastante bem.
José Eduardo Moniz falava-me que o centenário estava próximo e tínhamos que fazer uma série para a TVI e fui à luta. No início, ganhámos o concurso do ICA e depois chamou-se a Raquel Palermo. No livro, a grande história para uma projecção audiovisual é a relação que a Jacinta tem com a enfermeira Aurora. Sabe-se muito pouco da enfermeira e isso para ficcionar é muito bom porque temos mais liberdade. Propus que se começasse a história no fim da vida da Jacinta, no hospital da Dona Estefânia, exactamente em conversa com Aurora, que segundo se sabia não era uma crente. Como queriam chegar a um público o mais vasto possível, pois tinha o centenário e a vinda do Papa, e como essa ideia estava no livro, concordaram que pudesse pôr.
Tinha um sonho que aquilo se converteria num filme e o produtor, José Silva Pedro, vindo de Cannes, disse que queriam fazer um filme. Foi também uma minissérie que também depois se adaptou para filme, e na época até esteve no top. Foi um sucesso.
No seu percurso como argumentista escreveu dez telenovelas, passando pelos três canais generalistas portugueses. O que é que motivava o Manuel a entregar-se em cada projecto?
Quando entro num projecto entro sempre com paixão, entrego-me a ele de alma e coração. Não sou novelista por natureza, mas preparei-me para isso. Percebi que era o instrumento para entrar na ficção de televisão. Quando estamos a trabalhar numa novela é um trabalho com stress e a pressão das audiências, mas ao mesmo tempo é encantador porque estamos a criar sonhos, a relacionar-se com actores, directores.
Sempre tive a percepção que não ia ser para sempre. Pensei que seria uma fase e que depois teria que partir para outra. Sobretudo, quando entrei em Jardins Proibidos, estava preparado.
Todas as novelas em que trabalhei, com mais ou menos sucesso, fi-lo com muita paixão e vontade. Ter também ajudado pessoas que estão no mercado, como Ana Casaca, deixa-me contente.
Jardins Proibidos estava prevista para ser uma série de fim-de-semana de 40 episódios mas logo tornou-se uma novela de 150 episódios, iniciando um ciclo de produção inimterrupto do formato em Portugal. No início do projecto, em 2000, tinha noção do alcance dessa história?
Não tinha noção nenhuma. Esse ano (2000) foi como uma pena, foi irrepetível e incrível. Foi o ano em que nasceu a minha filha mais nova. Tudo foi para muito além das expectativas, que nem existiam.
Tinha havido uma experiência muito boa, de Todo o Tempo do Mundo, com o Ruy de Carvalho, de Tozé Martinho, no qual colaborei discretamente. Depois fui recompensado porque convidaram-me para escrever os Jardins Proibidos. Passei por cima desta experiência com muita responsabilidade, trabalho, serenidade e tranquilidade.
Era uma novela de fim-de-semana, e estava a correr bastante bem. Depois começou a entrar para a semana, subiu e começou a ultrapassar as novelas brasileiras.
O trabalho como argumentista do Manuel começou nos anos 80 e perpassou as décadas seguintes, chegando até à actualidade. Que alterações tem identificado na sociedade portuguesa, e de que forma elas repercutem naquilo que o público procura assistir na televisão?
Os Jardins Proibidos foi uma novela que, segundo José Eduardo Moniz, leu a realidade portuguesa. Trazia uma personagem “má”, mas foi a que mais encantou o público, interpretada pela Lurdes Norberto. Representava o antigamente, as tradições, a educação com a dualidade de ser muito dura, com pouco amor, mas ao mesmo tempo, para parte da população havia uma certa saudade, das regras. Havia uma leitura histórica que conquistou o público. Teve um grande impacto na sociedade. A heroína (Vera Kolodzig), que tinha 15 anos, era a melhor na natação, devia ser um arquétipo que as pessoas quisessem imitar, e que tinha o sofrimento de ir em busca dos seus pais.
Sinto que a juventude se afastou das novelas, estando hoje em dia mais relacionada com as séries de streaming. As novelas cada vez estão mais a um nível das gerações mais velhas. Têm modernidade em determinados aspectos, mas também são velhas, porque os conflitos em si fogem muito da realidade. Antes havia mais o conceito de novela de autor.
Talvez por estarmos a passar por um tempo tão difícil, as novelas fogem muito da realidade e entram no imaginário para as pessoas se distraírem. Nesse aspecto houve um grande retrocesso. A última novela que teve uma linha dramaticamente mais rica foi Ouro Verde, que acabou por ser justamente premiada.
Que balanço faz da ficção portuguesa no momento actual?
Sinto que as interpretações dos actores melhoraram muito. A novela portuguesa procura não criar problemas ao espectador. Não estou de acordo com isso, pois a dramatização de situações que nos preocupam pode ser uma catarse. Acho que se tem que partir para outro patamar.
A RTP tem uma aposta de ficção muito concreta, com um lado ideológico, mas que há que respeitar. A SIC está a fazer uma experiência de investimento em algumas séries que têm conseguido cativar, já com uma linguagem nova, tal como A Generala.
O Manuel já foi professor, tendo ensinado guionismo às gerações mais jovens. O que recorda dessa experiência?
Óptima! Primeiro foi no IADE, e até trouxe de lá um autor comigo – o Tomás Múrias – que tinha 18/19 anos e começou logo a trabalhar comigo. Foi em 1995/96, um curso à parte, que correu bastante bem. Havia gente com muito talento. A escrita para guionismo, como em tudo na vida, para ter sucesso não basta apenas ter talento. Aliás, Nicolau Breyner dizia que era preciso 10% de talento e 90% de trabalho.
Depois, quem foi muito responsável para eu ter sido professor foi o Jorge Paixão da Costa, na Lusíada. Aí fui dar aulas no curso específico de guião para novela.
O que me encantou mais foi na Católica, numa pós-graduação, por volta de 2010/11, onde coordenei toda a parte de guião para série. Tinha um grupo de alunos jovem, maioritariamente feminino. Correu muito bem. No fim, queriam fazer uma nova pós-graduação, só com um professor e escolheram-me a mim, mas não pude aceitar porque estava a fazer o documentário Fátima no mundo.
Mais recentemente estive na Restart, mas já eram poucos alunos.
Os alunos gostavam muito da parte prática, que era à base de situações. Foram experiências muito ricas onde aprendi muito.
Sendo a vida do Manuel marcada pelas histórias que contou na televisão, nos livros e no cinema, sente que ainda há alguma coisa para contar?
Há por contar as minhas experiências. Cheguei a uma fase da vida que penso “porquê que cheguei a este ponto?” ou “porquê que não fui por outro caminho?”. Na vida, deparei-me com situações que contadas ninguém acredita. As experiências que tive ultrapassam tantas vezes a ficção, que às vezes se torna difícil ficcionar.
Sobre o futuro da humanidade há muito para escrever, muito para dizer, muito para contar… mas há um certo medo de o fazer. Estes temas podem mexer com as pessoas e, em termos objectivos, podem trazer grandes audiências. Podem trazer uma novidade, uma nova luz ao mundo.
Mas neste momento estou dedicado a perceber-me a mim.
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