Entrevista – Bruno Soares: «Apesar de estar na publicidade tenho a minha génese no cinema»
O Quinto Canal traz até si uma entrevista exclusiva com Bruno Soares, realizador de filmes publicitários e de curtas-metragens nacionais.
Fizeste uma pós-graduação em Cinema e Direção de Fotografia na Escola Superior de Cinema e Audiovisual da Catalunha. O que de melhor guardas da experiência que tiveste em Barcelona?
Barcelona foi um sítio muito especial para mim. Com 21/22 anos conheci a cidade pela primeira vez depois um convite de uns alemães com quem tinha estado a surfar na praia de Ribeira de Ilhas, na Ericeira, de onde sou natural. Estavam a organizar uma Feira Internacional financiada pela União Europeia, em Leipzig. Apanhei a caravana e como segunda paragem tivemos Barcelona. Entre muitas aventuras, acabei por já não continuar a viagem com eles e fiquei mesmo por ali, onde conheci muitos artistas e rapidamente percebi que era uma cidade onde poderia lá viver.
Na faculdade tinha tido um professor que me falou da ESCAC. Como já tinha acabado o curso de cinema, fui ver as oportunidades que haviam por lá e vi uma pós-graduação em Direção de Fotografia, mas era preciso ter currículo, em Imagem. Resolvi atirar o barro à parede e ao contrário do que pensava, fui admitido. Na altura já trabalhava bastante na área em Portugal. Lembro-me que estava a fazer a publicidade do Pingo Doce (“Venha ao Pingo Doce de Janeiro a Janeiro”) como primeiro assistente de Realização quando tive a notícia que tinha sido admitido. Foi uma decisão difícil decidir se ia ou não, mas acabei por ir, e, quando cheguei a Barcelona o condutor do táxi que me trouxe do aeroporto até a cidade disse-me depois da nossa conversa: “Vais ser muito feliz nesta cidade” e ele teve toda a razão.
A ESCAC deu-me as ferramentas para concretizar os meus filmes tecnicamente, sem estar sempre dependente de mais alguém e fez-me perceber que o meu futuro não era só a direção de fotografia, mas muito mais a realização. Num dos trabalhos que lá fiz, uma realizadora, como quem trabalhava enquanto Diretor de Fotografia, disse-me que eu daria um excelente realizador.
Já Barcelona deu-me muito mais do que estava à espera. Conheci muita gente, muitos artistas, escritores, realizadores, atores, artistas plásticos, cantores de opera, etc. Deu-me uma visão muito mais macro de um mundo inteiro que não conhecia e mostrou-me o que é viver e trabalhar num local onde existe uma indústria artista e cinematográfica.
Um dos muitos sinais que a vida me foi fazendo chegar, foi na ESCAC, enquanto fazíamos um exercício de direção de fotografia, cujo tema que nos tinham dado era a demência mental. Juntamente com mais três colegas escolhemos o Alzheimer. Já tinha feito três curtas-metragens antes de ir para Espanha como realizador, mas estava longe de acreditar que esse era o meu destino. Quando dei por mim estava uma vez mais a realizar. Esse exercício acabou por se tornar uma curta-metragem, a qual assino a realização, e curiosamente foi o filme que todos mais gostaram e ganhou a melhor nota da “competição”. Éramos os underdogs da faculdade e por isso ainda soube melhor.
Como defines o teu estilo enquanto cineasta?
Acho que não tenho um estilo. Estou constantemente a tentar evoluir, descobrir novas técnicas, formas de contar histórias. A profundidade e a densidade talvez sejam palavras que me caracterizam um pouco. Gosto dos pormenores subtis nos filmes. Aqueles que só vemos na segunda vez, mas que na primeira nos fizeram querer ver de novo. Quando revejo as minhas nove curtas, apercebo-me bastante bem da minha evolução. Passei de um cinema mais linear, para um mais consistente, com uma característica em comum que evolui inconscientemente: o salto entre o espaço físico da história para o espaço psicológico do personagem daquela mesma história. Gosto disso, sinto que conhecemos melhor aquela personagem, o que realmente sente, como se vê a si e ao mundo. Afinal de contas quem vê caras não vê corações e gosto bastante de fazer parelha com o espectador e juntos descobrirmos o que aí vêm por diversas perspetivas.
Que guiões desejas vir a ter oportunidade de produzir?
Quero filmar histórias que de alguma forma estejam relacionadas com a nossa época. Que possam ser marcos e que mostrem as características e inquietudes do nosso tempo. Quero poder construir e dirigir personagens densas, com sumo e subtexto, que sintam muito mais do que falam. Que possam num só olhar dar-nos muito mais do que nos dariam com uma explicação. Quero fazer histórias apaixonantes, e divertidas. Quero fazer filmes tecnicamente difíceis e desafiantes. Filmes bonitos que marquem quem os vê.
E se puder, gostava de manter o meu lado mais intuitivo que nunca deixa um guião fechar até ao dia da montagem. Gosto da ideia de no dia anterior às filmagens pensar o que vou fazer de novo para além do que já está pensado, organizado e previsto. Quem sabe, fazer como o Jean-Luc Godard em À bout de souffle (1960) que escrevia os guiões das cenas que ia filmar no dia seguinte.
Que caraterísticas mais aprecias nos atores com quem trabalhas?
Quando fazes publicidade começas a valorizar muito a figura do ator. Não é um departamento que te seja dado em todos os trabalhos. Muitas vezes uma new face ou um modelo chegam para o gasto. Depois cabe ao realizador “sacar” o que é preciso… Verdade que em muitos trabalhos não existe subtexto ou muitas direções para dares… Apenas tens de estar “nesse jardim” com um produto na mão e sorrir e ser simpática para a câmara… Mas um ator é sempre um ator e quando carregas no REC sentes logo a diferença, mesmo que seja numa situação desprovida de profundidade.
Mas fora isso, gosto muito de trabalhar com atores. Sempre gostei! Tive a minha melhor nota na faculdade em direção de atores, o meu professor era o António Pedro Vasconcelos. Gosto de um ator que facilmente se adapte. Que traga sugestões, que esteja preparado para sair da sua zona de conforto. Por norma não gosto de direções muito fixas e cenas muito estáticas. Gosto de pôr os atores a movimentarem-se e ver o que sai dali.
Por exemplo, na minha curta The Short Film teve uma parte que não tinha guião. Limitei-me a dizer como tinha imaginado a cena e disse para os atores improvisarem. A cena era numa sala ampla com três sofás, eu fiz três/quatro takes e eles brilharam.
O que mais te atrai no mundo da publicidade?
É a quantidade, facilidade e rapidez do trabalho (há mais dinheiro, melhores técnicos e meios artísticos). Há o que se pode chamar de indústria cinematográfica em Portugal e isso significa poder fazer os filmes que ganhas de uma forma mais rica e bonita.
Em Portugal há mais isso na publicidade do que no cinema. Mas atenção que estamos a evoluir bastante com a oportunidade que começou a haver para a entrada de novos realizadores.
Nas últimas semanas tem-se falado na Ucrânia por razões tristes e preocupantes, entre elas a vulnerabilidade de mulheres e crianças perante redes de tráfico humano. Há 16 anos fizeste o filme Ciência Política cuja protagonista era uma ucraniana que se debateu com esse problema. O que despertou na altura a vontade fazer uma curta-metragem sobre esse assunto?
Foi um filme feito da boa vontade das pessoas com quem trabalhei e um pouco de sorte também. Gostei muito de o fazer e, foi um filme que mudou a minha vida. Foi sem querer, tal como a minha ida para o cinema.
Tudo começou com um exercício do segundo ano de cinema na faculdade, em que me foi pedido para escrever um argumento. Na altura tinha ouvido falar sobre tráfico de mulheres e a quantidade de mulheres em Portugal provenientes da Europa de Leste a trabalhar como strippers ou na prostituição.
Em 2006, quando trabalhava a fazer carros de cena nas novelas da SIC, conheci um romeno que também trabalhava na área e me falou com mais pormenores que vieram a enriquecer a história. A partir daí comecei a escrever o texto para o filme que eu gostaria de um dia fazer e mais tarde o Leonardo António, realizador de cinema, ajudou-me a limar as pontas. Meti todas as minhas referências da altura. Criei um gangster russo, o enredo do tráfico humano, depois conheci a Alexandra Lopes Rocha que era perfeita para o papel e que como ela trouxe o seu professor, Dimitri Bogomolov, que me ajudou bastante. De repente, com 22 anos estava a fazer um filme com um elenco brutal que estavam a aprender a falar russo e a lutar. Posso dizer que houve uma tempestade perfeita para se fazer aquele filme em todos os departamentos, histórias e pessoas.
Como te sentiste quando conseguiste o apoio do ICA no ano passado? Quão difícil é conseguir apoios para audiovisual em Portugal comparativamente com outros países?
Quando era mais novo concorria mais vezes ao ICA, com longas inclusive, mas depois relativizei. Percebi que existiam estruturas já pesadas, uma com bons realizadores, outras que não, que percebiam muito bem como ganhar o financiamento e que infelizmente não conseguia chegar até elas.
Mais tarde, já depois de ter volto de Barcelona, fui parar à Take 2000 para fazer dois filmes como assistente de realização. O José Mazeda, produtor executivo e velho lobo do mar, percebeu logo que eu era mais que um assistente de realização e desafiou-me para escrever um guião para o diretor de fotografia José António Loureiro. Fi-lo e ganhámos o ICA. Perguntou-me se não tinha mais guiões. Na verdade, até tenho bastantes. No primeiro ano concorremos com o Sós que não ganhou, no segundo sugeri concorrer com outro guião, mas sabe-se lá porquê submeteram novamente o Sós e ganhou. Na verdade, fez todo o sentido ganhar. Num ano de pandemia, ganhou uma história que se passava em 2013, num ano de crise. É um filme intemporal, com personagens verdadeiras, que se enquadram perfeitamente nestes tempos que vivemos.
Ficamos em terceiro lugar, uma vez mais o underdog a ganhar. Tive que responder a três contestações no ICA de pessoas que queriam tirar-me de circulação, tendo-me sido exigido que prestasse provas do meu currículo. Tive que ligar a pessoas com quem já não falava há anos para confirmarem as minhas referências.
Podes adiantar-nos alguma coisa sobre projetos futuros?
Neste momento estou a terminar o Sós. Depois vou inscrevê-lo em festivais. A minha ambição é concorrer ao ICA este ano com mais uma curta e ver a minha sorte. Para o ano espero vir a pensar em longas, pois apesar de estar na publicidade tenho a minha génese assenta-se no cinema.
Estou sempre pronto para novos desafios que me façam crescer enquanto realizador, mas acima de tudo enquanto ser humano. Gostava de filmar mais e maiores publicidades, mas acima de tudo gostava poder continuar a trabalhar entre as publicidade, videoclipes e cinema mais e melhores condições para poder expandir a minha visão e estética, porque fazer omeletes sem ovos já não dá para mim.
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