Entrevista – David Bonneville: «Os filmes não são nossos, são do mundo»

O Quinto Canal traz até si uma entrevista com David Bonneville, realizador do filme O Último Banho, que esteve nomeado nos Prémios do Quinto Canal 2021.


O Último Banho é uma longa-metragem escrita e realizada por David Bonneville. Gravado entre o vale do Douro e o Porto, o filme tem no elenco atores como Anabela Moreira, Martim Canavarro, Margarida Moreira, Ângelo Torres, Miguel Guilherme, entre outros.

 

Antes d’O Último Banho, os teus filmes, nomeadamente Heiko (2007) e Cigano (2013), já eram exibidos e premiados em festivais portugueses e por todo o mundo. Qual é a influência que esse reconhecimento externo exerce no teu trabalho enquanto cineasta?

Esse reconhecimento externo surge a posteriori, isto é, vem como consequência do trabalho que elaborei e concretizei anteriormente aos festivais. Sendo esta a lógica, a influência não é nenhuma. Eu faço os filmes a pensar no modo mais eficaz de explorar certa ideia, sentimento, trama, personagens, história – depois a recepção do trabalho final é algo que não posso controlar. Os filmes, tal como os filhos, não são nossos, são do mundo.

O que mudou na tua carreira ao passares de cineasta que fazia curtas-metragens para longas?

Continuo a ser o cineasta independente de sempre, mas com uma maior bagagem e aprendizagem. Cada projeto traz novos conhecimentos, porque a natureza deles é sempre diferente. E deste modo se vão acumulando saberes, uns mais técnicos e outros mais artísticos. Sinto que de filme para filme há uma evolução constante, tanto na forma de fazer, na linguagem audiovisual, como do resultado final. Cada projeto traz as suas especificidades e tenho que respeitar essa organicidade. Tenho de continuar a produzir obra porque é o que mais amo fazer. Não importa o formato – pode ser de curta ou longa duração, série para televisão, publicidade, filme para o cinema ou internet. Adoro novos desafios. O que tenho sempre em mente é o contexto da proposta, os recursos disponíveis e a integridade do projeto.

No que respeita à minha atividade paralela, enquanto professor, desde 2019, criei e ministrei um módulo de raíz – de realização de cinema – e em 2022, além desse módulo, vou lecionar também um módulo de escrita de argumento.

Um elemento frequente nos teus trabalhos é a ideia da transgressão. Consideras que quando assiste aos teus filmes, o público consegue livrar-se dos tabus que habitam a sociedade e focar na essência das personagens?

Espero que sim, que as pessoas se deixem transportar pelo universo e personagens que apresento nos meus filmes. Não sei como medir a reação do público, mas um indicador disso, e que pode ajudar na avaliação, é o da resposta da crítica, que tem sido muito favorável a todos os meus filmes narrativos. O feedback pessoal que recebo no fim de uma projeção pública, por email ou telefone, quando os filmes passam na televisão ou no cinema, também poderão indicar que sim. Em O Último Banho julguei que pudesse haver um certo pudor em relação às ações e reações da protagonista do filme, que é um freira, mas isso não aconteceu. A construção da personagem tem uma solidez tal que o público parece compreender o seu dilema interno a um nível humanista e empatiza com ela, e isso produz pathos, compaixão.

Recentemente revelaste que a ideia da história d’O Último Banho surgiu num momento de solidão que sentiste quando estavas a fazer o mestrado em Londres. Como achas que numa metrópole cosmopolita com uma população a rondar os 9 milhões de habitantes pode haver espaço para a solidão?

É em metrópoles destas que, aos recém-chegados, mais solidão pode gerar. Há muita gente por todos os lados, mas todos têm os seus círculos formados, estão ocupados com mil coisas. Eu tinha formado o meu círculo já também, tinha amigos na cidade, mas todos moravam bem longe de mim ou estavam ocupados a trabalhar. A ideia nasceu no fim do mestrado, estava desempregado, e vi-me, pela primeira vez, muito tempo sozinho em casa e sem amigos nas imediações. Foi dessa solidão que surgiu a recordação de uma reportagem que tinha visto anos antes sobre o nascimento milagroso de um bebé numa aldeia despovoada e envelhecida no interior de Portugal. Foi em torno deste evento que articulei a história do filme.

O que te levou a acreditar que O Último Banho seria a história certa para ser a tua primeira longa-metragem e que seria bem recebida pelo público?

Acreditei que a ideia base narrativa do despovoamento rural pudesse refletir uma certa realidade contemporânea de Portugal e muitíssimos mais países ocidentais. Esta ideia foi explorada com mais protagonismo no argumento inicial mas no desenvolvimento das personagens e necessidades narrativas a história foi tomando outros caminhos, em conjunto com o meu co-argumentista Diego Rocha. Os elementos desta génese da história estão no filme e fazem parte integral da trama, mas não são o foco narrativo.

O Último Banho foi gravado no verão de 2018, porém só teve estreia mundial no Festival de Tóquio no ano passado, e estreia nos cinemas comerciais este ano. Como foi lidar com a ansiedade durante esse hiato temporal?

Há sempre um tempo de espera (ou desespera) para a estreia do filme – seja em que suporte ou âmbito for. No caso de O Último Banho esteve sempre acompanhado de trabalho, e por isso foi menos asséptico. O filme teve um ano e meio “parado”, ou antes, em constante espera, da banda-sonora original e da música diegética. Foi um processo muito intricado e moroso, mas que no fim valeu a pena lutar. Depois houve um primeiro trabalho de mixagem e correção de cor em França, mas o curto espaço de tempo e músicas em falta obrigaram a mais dias sobre este trabalho já em Portugal ou, devido à pandemia, à distância entre França e Portugal. Devido a esta complexidade, o envio para festivais foi também tardio, mas ainda chegou a ser enviado a alguns como “work-in-progress”. Com a seleção coincidente em Tóquio e Mostra de São Paulo, apressou-se a finalização da obra.

O que te levou acreditar que a Anabela Moreira era a atriz ideal para dar corpo à Josefina e o Martim Canavarro ao Alexandre? O que costumas considerar no processo de seleção do elenco dos teus filmes?

A Anabela Moreira era a atriz que tinha em mente para o papel da Josefina desde a primeira versão do argumento. Conhecia o seu trabalho bastante bem assim como o seu método de estágios. Além deste trabalho de preparação, quando conheci a Anabela pessoalmente, anos antes, numa première de um filme nacional, surpreendi-me pela forma como estava arranjada. Não a reconheci dos filmes que tinha visto, e percebi que ela era também camaleónica. Esta característica era necessária para a transformação da Josefina.

Encontrei o Martim Canavarro no catálogo da agência True Sparkle, e foi o adolescente que quis ver primeiro no casting pois tinha a idade e as características físicas exatas que tinha escrito e imaginado para o personagem Alexandre. Vim depois a comprovar que o Martim tinha também um talento inato para representar, além de ter imensos paralelos com a personagem, como o amor pelo futebol e o ter morado no campo.

Quando fiz o casting final com a Anabela e o Martim juntos, depois de umas pequenas direções, já via o filme a transcorrer perante os meus olhos na sala de ensaios.

Enquanto profissional que já trabalhou no estrangeiro e que frequenta bastante os festivais internacionais, sentes faltar alguma coisa ao cinema português em termos de produção e distribuição?

Falta haver mais investimento, maior orçamento global para apoiar mais produções de filmes – isto a nível do financiamento. Temos muitos talentos, cada vez mais, e projetos muito fortes, mas poucos apoios. O rácio de filmes portugueses produzidos e o êxito em festivais de cinema internacionais de grande prestígio é desproporcional, o que confirma o extraordinário talento existente em Portugal. Ainda assim são muito poucos filmes a circular e os cineastas estrangeiros que tenho encontrado ao longo dos anos repetem que é pena haver sempre tão poucos filmes portugueses no circuito de distribuição e festivais.  Deveriam existir apoios regionais, como acontece em países como Inglaterra, França e Brasil, e outras estruturas afins.

Na distribuição falta investimento na promoção dos filmes que não foram pensados para o grande público – porque esses filmes mais “populares”, por si só, têm o seu público garantido. Os filmes considerados mais artísticos, ou menos mainstream, merecem ser igualmente vistos e promovidos e publicitados em canais de televisão, jornais, outdoors, cartazes espalhados pela cidade e nos cinemas. Não trabalhando a promoção entra-se num círculo vicioso que dificilmente se dá a conhecer. Deveria haver formação e fomentação de públicos. Mais dias de idas ao cinema gratuitas por ano para criar hábitos de frequentação. Chamar as escolas ao cinema também. Ainda no mês passado, no festival Caminhos de Coimbra, estava uma turma de adolescentes na plateia a ver O Último Banho. Todos eles com os olhos presos ao ecrã, a viver a história tão intensamente que respondiam pelas personagens, riam e reagiam com entusiasmo a toda ação do filme. Foi para mim uma experiência muito rica e privilegiada, pois foi a primeira vez que vi o filme acompanhado de jovens daquela faixa etária.

Há muito que o setor da cultura clama por ações a nível de investimento, estatutos e regulamentação às entidades políticas. Haverá alguma razão para os decisores políticos não corresponderem às reivindicações e incrementarem efetivamente o setor da cultura?

A cultura tende a ser o setor que sofre mais nos orçamentos de estado em países onde não abunda a riqueza. No entanto, há que pensar que a cultura não só emprega milhões de pessoas, como forma os cidadãos do seu país e torna-nos mais ricos, como indivíduos mas também como nação. Muitas pessoas querem vir conhecer, viver e investir em Portugal pelo seu legado histórico e cultural, e não só pelas suas praias. As referências culturais são o que melhor representa Portugal. Somos um país pequeno e com muita história, talvez os maiores feitos conhecidos sejam os Descobrimentos, mas são os grandes nomes da literatura, pintura, arquitetura, música e cinema que nos fazem perdurar. E é pelas obras dos seus artistas que o país é (re)conhecido e perpetuado. A cultura atrai investimento, turismo e riqueza. Só quem pensa a curto prazo é que não vê isto.

Podes adiantar-nos alguma coisa sobre futuros projetos?

Estou com vários projetos em diferentes estádios de desenvolvimento, mas todos no papel ainda. Tenho uma curta-metragem e um documentário prontos a entrar em produção, e uma longa-metragem em processo de escrita. Gostava de realizar projetos por encomenda também. Não vejo a hora de começar a filmar de novo!


Rúben Gomes

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